SEU FEMINISMO RECONHECE AS MULHERES COM DEFICIÊNCIA?

#DescriçãoDaImagem: Fundo preto com um texto em amarelo escrito “Seu feminismo reconhece as mulheres com deficiência”. Abaixo está o logo do coletivo feminista Helen Keller

O feminismo foi um importante aliado para o entendimento da deficiência, principalmente, por trazer a perspectiva do cuidado como pauta política. Mesmo que essa discussão tenha se pautado nas mulheres que exerciam o papel de cuidadoras, foi possível estabelecer o entendimento do cuidado como direito, algo essencial para a compreensão da autonomia da pessoa com deficiência.

Ainda hoje o lugar da mulher no debate sobre deficiência é o de cuidadora, centralizando a discussão nas mulheres que, devido à desvalorização/negação econômica da reprodução social, abdicam de seu desenvolvimento pessoal e profissional em prol de seus filhos. Reconhecemos isso, mas o debate precisa ser expandido.

Pessoas com deficiência são pessoas e, por isso, também se constituem a partir de marcadores sociais como gênero, raça, idade e sexualidade. Não somos apenas “filhos”, socialmente objetificados, também somos mulheres.

Estimativas apontam que de 40% a 68% das mulheres com deficiência irão sofrer violência sexual antes dos 18 anos de idade (UNFPA, 2018). De acordo com o Atlas da Violência (2018), cerca de 10% das vítimas de estupro possuíam alguma deficiência e, além disso, 12,2% do total de casos de estupros coletivos foram contra vítimas com deficiência. Além de pautar essa realidade, precisamos romper com a individualização dessas violências. E a perspectiva feminista é fundamental para isso.

Com base nesse entendimento, em 21 de setembro de 2018 foi iniciado o Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência. A data foi escolhida por ser o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, data que surgiu por iniciativa do movimento de pessoas com deficiência e, pela proximidade com a primavera, simboliza a renovação. Um dos grandes responsáveis pela data de resistência foi Cândido Pinto de Melo, militante na luta pela democracia e pela inclusão das pessoas com deficiência. Cândido sofreu um atentado que o tornou paraplégico em 1969, enquanto presidia a União Estadual dos Estudantes de Pernambuco (UEP). A resistência à ditadura militar, que o levou a vivenciar a deficiência, também lhe ensinou sobre a importância da luta organizada, a busca pela inclusão e participação plena na sociedade.

Esse simbólico 21 de setembro demarca nosso compromisso em defesa da democracia, que tarda a chegar a todas nós, e o enfrentamento ao silenciamento imposto às mulheres com deficiência, onde pautas importantes, como garantia de direitos sexuais, direitos reprodutivos e uma vida livre de violências, sempre foram deixados para depois.

Se nós, mulheres com deficiência, representamos ¼ das mulheres brasileiras, por que permanecemos invisibilizadas dentro do próprio movimento feminista? Se as mulheres com deficiência são a maioria da população com deficiência, por que os homens monopolizam microfones e espaços no movimento?

Ao considerarmos que, de acordo com o IBGE (2010), 56,57% da população com deficiência é composta por mulheres; 49,7% das pessoas com deficiência se encontram na Região Nordeste (26,3%) e Norte (23,4%), regiões economicamente mais pobres do Brasil, e 30,9% das mulheres negras são mulheres com deficiência, entenderemos a relação direta entre gênero, raça, classe e deficiência.

É fundamental compreender que se morre por ser mulher e se vivencia a deficiência pelo mesmo motivo, já que a deficiência possui relação com abortos precários, violência obstétrica, violência doméstica, trabalhos precarizados e a negação de direitos fundamentais como alimentação e saneamento básico. Sendo assim, precisamos saber de quem são esses corpos e o impacto do sistema capitalista sobre eles. A consciência de nossa subalternidade como resultado direto da lógica de mercado nos leva à luta anticapitalista, pois não há igualdade possível enquanto não houver a ruptura com um sistema sustentado no patriarcado, no capacitismo, no racismo e nas demais opressões. Ao sermos entendidas como não rentáveis/exploráveis, a negação a nossa existência, enquanto mulheres com deficiência, segue aceitável, inclusive aos progressistas.

Deficiência não é apenas a presença de uma lesão, doença ou alterações genéticas, mas o resultado dessas condições individuais em interação com as barreiras construídas e impostas socialmente. Não somos objetos. Nossa existência não pode seguir sendo pautada por dualismos perversos, que nos dividem em estorvo ou inspiração, pecadores ou anjos. Muito menos seguirmos com nossos discursos validados apenas pela lógica de superação, onde falamos sobre o quanto nossas vidas são horríveis para que vocês se sintam melhores.

Deficiência virou negócio não apenas para poucas pessoas com deficiência que vendem esse discurso, mas principalmente para religiosos que vendem nossa cura, profissionais de inclusão que, por não terem deficiência, transitam em qualquer espaço com seus discursos poéticos de uma sociedade inclusiva, mas também para políticos que descobriram no velho discurso de caridade a forma de “esconder” seus discursos de ódio. E sobre isso, a esse governo e aos demais neoliberais, reforçamos que a “meritocracia” abre um tsunami para a perpetuação da miséria das pessoas com deficiência, sobretudo a nós, mulheres. E saibam, nenhum discurso em libras é capaz de anular a nossa condenação a perda de direitos. Saibam que o exercício da nossa cidadania, assim como o de outros grupos, não é negociável.

Não podemos aparecer na pauta de defensores de direitos humanos apenas em resposta a discursos vazios, carregados de lágrimas e confetes, de primeiras damas.

Qual legitimidade teria um evento sobre feminismo sem a participação de mulheres? Qual a legitimidade de um evento que discute o orgulho negro sem o protagonismo de mulheres e homens negros? Já imaginou um evento sobre pessoas LGBTQI+ sem pessoas LGBTQI+? Por que ainda hoje, quando a deficiência é lembrada, nosso protagonismo é entendido como menos importante ou, até mesmo, dispensável? Deficiência não é tragédia individual, é construção social e escolha política.

Nesse 01 ano de existência passamos a ocupar espaços importantes em nível nacional, como a Rede-In (Rede Brasileira de Inclusão de Pessoas com Deficiência) e a 1ª Frente Parlamentar Feminista e Antirracista com Participação Popular da América Latina. Além disso, já participamos da celebração da Visibilidade Lésbica na Casa ONU, do I Seminário Internacional de Saúde Sexual Reprodutiva, HIV e Pessoas com Deficiência, organizado pela UNFPA, 16ª Conferencia Nacional de Saúde e do 6º Encontro Nacional das Cidadãs Posithivas. Falamos ao plenário do Conselho Nacional de Saúde sobre a Saúde da Mulher com Deficiência e falamos aos Estudantes NINJA sobre nossa presença nas universidades. Somos mais de 30 mulheres com deficiência espalhadas pelas 05 regiões do país. Estamos nos fortalecendo, mas muito ainda precisa ser dito e, principalmente, compreendido! Entre nossas pautas, entendendo que a acessibilidade é transversal a todas elas, está a participação política das mulheres com deficiência, acesso a saúde, educação, segurança pública, trabalho e autonomia econômica.

Reforçamos aqui que a ausência de acessibilidade é o ápice da manifestação do capacitismo, que é a idéia de que pessoas sem deficiência são superiores às pessoas com deficiência, em qualquer aspecto, e reforçamos que a construção de barreiras a nossa participação, ao longo da história, vêm sendo uma forma de nos manterem distantes dos espaços de decisão. Partindo disso, acessibilidade não pode seguir como algo facultativo, mas sim como um direito humano e um instrumento indispensável e inegociável não apenas a nós, mulheres com deficiência, mas a todas e todos que não admitem esse apartheid velado (ou seria escancarado?) imposto aos nossos corpos.

Nossas questões, enquanto mulheres com deficiência, não são separadas das lutas feministas, por isso reiteramos a necessidade de compreendê-la como um marcador que nos submete a discriminações e negação de direitos.

Já nos reconhecemos como mulheres LBTIs, negras, indígenas e brancas, vivendo com HIV, urbanas, do campo, em situação de rua… Agora precisamos ser reconhecidas também nessas lutas! ESTAMOS JUNTAS?

Publicado por Deficiência em Foco

Espaço destinado para informações, discussões e pesquisas sobre todos os tipos de deficiências.

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